Esses resíduos emocionais foram alimentados ao longo de todo o processo religioso, por enquadrar-se na concepção mágica e mística do Universo Misterioso, inacessível à compreensão humana normal.
As Religiões ligaram estreitamente esses conceitos aos de sagrado e profano e não tiveram condições para superá-los.
Ele se reconhece como forma existencial subjetiva integrada na estrutura objetiva da realidade material, mas sabe por experiência empírica que esse condicionamento material é efêmero e terá fatalmente de se desfazer na morte.
O instinto de conservação o leva a reagir contra essa fatalidade. As provas de sobrevivência dadas pelos fenômenos mediúnicos não o satisfazem, pois essa sobrevivência espiritual o desliga do sensível, a única que lhe parece natural. Ele se apega a essa realidade através de uma concepção mística indefinida, que lhe permite aceitar a possibilidade de uma continuidade natural após a morte.
As múmias e os mausoléus egípcios, o paraíso sensorial dos árabes e os dogmas religiosos da ressurreição no próprio corpo carnal atestam essa esperança no próprio processo histórico.
Kardec teve de agir com prudência na divulgação do Espiritismo, para que a reação violenta e fanática das religiões não asfixiasse no berço a nova mundividência que nascia das suas pesquisas mediúnicas. Mas em seu livro "O Céu e o Inferno", colocou o Cristianismo sincrético da igreja no banco dos réus e mostrou que a mitologia dos clérigos era mais absurda e mais cruel do que a do mundo clássico mitológico. A vida eterna oferecida pela Igreja depende de quinquilharias sagradas, de crendices simplórias, de condicionamento mental a um dogmatismo irracional, enquanto os mitos do paganismo se radicavam na realidade empírica, nas experiências naturais do homem no mundo e na lei universal da metamorfose, da incessante transformação das coisas e dos seres ao longo do tempo e do processo histórico racional.
A indestrutibilidade do ser não se condicionava, no pensamento mitológico, às exigências de uma corporação religiosa artificial e autoritária, mas às condições visíveis e palpáveis da realidade natural.
O medo da morte não era tão angustiante entre os gregos pagãos, que encontravam no pensamento dos filósofos uma consolação racional que a Igreja Cristã jamais ofereceu aos seus adeptos, sempre aterrorizados com o julgamento final, a ira de Deus e as crueldades eternas a que estariam sujeitos se caíssem nas garras do Diabo.
Há pessoas cultas, ainda hoje, que não conseguem conceber a sobrevivência humana após a morte em termos espirituais. Condicionaram sua mente, de tal maneira, ao mundo tridimensional, assustadas com os delírios da cultura religiosa, que temem afastar-se da segurança sensorial da matéria. A concepção materialista do mundo, tão absurda como a concepção mística, nasce da frustração do ser ante o pandemônio das alucinações do fabulário religioso. A deformação do Cristianismo revestiu a morte com todos os aparatos trágicos de uma civilização insegura e angustiada, semeando o terror na mente popular. A pressão excessiva dessa forma coercitiva de terrorismo mental.
Como em todos os excessos, a pressão esmagadora gerou a revolta e a descrença, levando os cristãos a optar pela alternativa,o materialismo inconsequente, mas pelo menos racional .
Era necessário esvaziar o mundo das alucinações teológicas para que o homem voltasse a pisar o chão, a apalpar a terra. Kardec assinalaria, mais tarde, que a finalidade do Espiritismo era transformar o mundo, afastando o homem do egoísmo e do materialismo. Mas isso porque, no seu tempo, a .vitória da razão já se definia, através das conquistas científicas de três séculos, do XVI ao XVIII, preparando o século XIX para a Renascença Cristã através do Espiritismo. Nessa fase, tão próxima da nossa, urgia restabelecer no homem a fé em termos de razão, mostrar-lhe que a insensatez mística devia ser corrigida pela experiência não menos insensata do materialismo. Se a mística levara o homem a querer fugir das limitações corporais através de cilícios e isolamentos negativos, que o afastavam das experiências da relação humana, o materialismo o levava a agarrar-se ao corpo, perdendo a visão espiritual da sua realidade subjetiva. A grande tarefa do Espiritismo se definia com clareza: era conter a emoção e a imaginação ligar a fé, à razão, unificar o psiquismo humano nos quadros da realidade terrena.
Era o que, Jesus havia feito na Palestina, combatendo os excessos do misticismo judeu e as misérias do materialismo saduceu. O Espiritismo dava continuidade, quase dois mil anos depois, ao pensamento cristão desfigurado pelo sincretismo religioso dos clérigos ambiciosos, que não vacilavam em trocar o Reino de Deus pelos reinos da Terra. Kardec podia então proclamar a verdade simples que não havia sido aceita, por falta de condições culturais válidas: o espírito não era sobrenatural, mas natural, o parceiro da matéria na constituição de uma realidade única, a realidade espiritual e material do mundo e do homem. A conclusão de Kardec é límpida e simples: os espíritos são uma das forças da Natureza.
Sem compreendermos isso não poderemos compreender o Espiritismo.
O grande desconhecido.
J.Herculano Pires
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